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disparates trágicos

 

“Seja este o tempo dos disparates!” – como se o dissesse algum demiurgo entre gêmeas sombras (cuspindo as palavras entre os dentes cinzapodrecidos; e sobre as pernas saltando, esquivas e espessas como estranhos cipós; e estendendo sobre o mundo as longas unhas, cravando-nas na terra: como a lâmina que fende a pele), como se o dissesse algum demiurgo obscuro – e a vós que porventura o evocásseis, pergunto: com que propósito o faríeis, se vos movesse algum anelo que não o anseio pelo vazio?

“Seja este o tempo dos disparates!” – mas nunca, não havia um demiurgo: sempre que aos céus clamastes, apenas o silêncio ouvistes, turbador eco do nada – ressoando nos desvãos de vossas almas, nos poços escavados em rasos cérebros. O que, então, vos restou fazer? O que fizestes quando, submersos no estreito sorvedouro, fartos de olhar as paredes cobertas de lixo e lodo, decidistes seguir as sendas que se a abrem às superfícies?

Fez-se o rubro dos veios infectos: assim se coligiu o firmamento, quando as trilhas retornaram do sol distante – onde todas as esperanças se haviam dissipado entre as chamas desesperadas. E vós, recolhendo as ruínas abandonadas nos ninhos de serpentes, levastes as fétidas arcas aos artesãos que jaziam, defuntos, nos castelos submersos nos esgotos; e vós, em vozes lúgubres que soavam como os cantos de agônicas gárgulas, erguestes arcaicas súplicas; e eles vos escutaram.

E implorastes: “Ó solenes artífices de coisa alguma, ó graves obreiros da entropia, ó excelsos arquitetos da estupidez, atendei nosso clamor: forjai um ícone inútil, um nume de merda, um falso messias que possamos cultuar, feito de lixo e lodo, de escombros e entulhos, de caos e catástrofes!”

A isso vos entregastes, insensatos, e tudo arrastastes à hybris, e tudo conduzistes aos abismos, e tudo arremessastes no ofertório – onde ele, o deus que com mentiras fabricastes, faminto abria a boca insaciável: onde a garganta imensa, escancarada, o verbo proferiu entre os engulhos:

“SEJA ESTE O TEMPO DOS DISPARATES!”

Henrique Marques Samyn

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