Pode-se imaginar a fotografia como um lapso de tempo morto embalsamado infinitas vezes para o futuro, gravando um registro translúcido da história. Mas ele iria além de documentá-la no presente. Teria o poder de nos fazer experienciá-la. Mesmo a tendo vivido quando ela aconteceu há pouco e já não a sentimos mais. Imersos que estivemos no calor dos acontecimentos, não a conseguimos enxergar na sua inteira grandeza. Como se fosse mágica, no instante em que iluminados por inspiradas fotos daquele fragmento de vida passada, a olhamos novamente, temos a oportunidade ímpar de a vermos sob nova perspectiva, podendo a perscrurtar e melhor a compreender.
Roland Barthes em sua obra última proclamava a força de evidência da imagem fotográfica. Singular foi seu título: câmara clara, não câmara escura como correntemente viam e ainda veem fotógrafos e pensadores o aparato e ação de fotografar. No entanto, escolheu para melhor firmar essa oposição, outro termo: camera lucida.
Lucida, do latim, significa iluminada. Mas viria a calhar nesses nossos dias de tão bem-vindo desafogo, relacioná-la também com a palavra lucidez, nos lembrando então que sua carência ocasiona sim desastre.
Pequenos lapsos temporais encapsulados fotografia constroem um mosaico que alicerça um relato pandêmico porque, embora cada seu retalho nos vincule a um local específico, esse local ainda que suburbano e marginal, nos introduz num lugar maior que a nossa casa, a rua, o bairro, a cidade; maior que o estado da federação e no caso do projeto pandemônio, do tamanho do país em que boa parte da população se verde amarelou duma estrambólica cor que hoje sabemos era de doença e crime e é agora de desalento e vergonha.
No hiato temporal entre 2018 e 2023, o Brasil que, desajuizado, se pôs acima de tudo, adoeceu, ensandeceu e mal cuidou de si e da sua gente que faleceu aos milhares na pandemia de covid. Suas instituições se esfrangalharam; a barbárie de mãos dadas com a truculência e a ignorância solapou valores humanistas e colocou em alto risco conquistas civilizatórias obtidas a grande custo. Ponto trágico dessa era de terror foi o da destruição dos palácios do poder no coração da nação.
Pandemônio não quer que essa história de pavor seja esquecida e para tanto, não vai se restringir a colecionar as fotos feitas nesses dias tão trevosos e agônicos as ajeitando num álbum disparatado. Pandemônio quer entrar fundo na entranha alucinada dessas imagens flagradas no Litoral Norte, em Sorocaba e São Paulo, de maneira a reforçar o punctum barthesiano. Mesclando-as, sobrepondo-as, cortando-as, as colorindo e, por vezes, nelas desenhando e escrevendo a escrita da dor e a da indignação no desejo redentor de delas extrair toda a náusea e todo o seu absurdo horror para que essa náusea pare de nos atormentar e para que esse horror nunca mais nos violente.
Pandemônio mais que ato de criação, é ato de expiação dos nossos pecados e dos pecados tantos e tão graves dos outros. Feito cisto, feito ferida pustulenta, precisa o organismo para ser sadio, purgá-la. Feito assombração, feito possessão, precisa a alma perturbada, para recuperar a paz perdida, ser exorcizada.
Pandemônio, transcedendo a prática fotográfica, se pretende um exercício de depuração do corpo vilanizado e de exorcismo da mente corrompida.
Márcio Pannunzio
julho de 2023