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Durante a pandemia de covid, a prefeitura de Ilhabela tomou uma medida drástica: cortou a comunicação com o continente. Somente caminhões de artigos essenciais e pessoas especialmente autorizadas conseguiam atravessar. Foi um momento de grande aflição para trabalhadores que moravam no continente e tinham emprego na ilha. Foi um momento de pânico para moradores que estavam no continente e, numa canetada, foram impedidos de atravessar de volta para suas famílias. O vídeo ilhabela e a peste criado por Pannunzio para a "semana de arte de Ilhabela - edição virtual" retrata criticamente esse período. A cidade havia eleito Bolsonaro com mais de dez por cento de vantagem sobre Haddad em 2018 e assistiu manifestações de apoio e repúdio a ele. A eleição municipal inundou o município de impressos entupindo bueiros e poluindo as águas. Carreatas tomaram conta das ruas; calçadas foram ocupadas por cabos eleitorais brandindo bandeiras que pareciam tourear com os carros que transitavam ao seu lado. Pannunzio fotografou tudo e fotografou também, durante a pandemia, a floração de brotos e flores pelos quintais do bairro onde mora, a Cocaia, fazendo com essas fotos um contraponto de vida que explodia de energia com as vidas humanas que se esvaiam, faleciam e as demais que, agoniadas, sobreviviam. A maior parte das fotos foi tirada em Ilhabela; uma pequena fração foi feita em São Sebastião, Caraguatatuba e Sorocaba; nesta última cidade, uma motociata do então presidente foi fotografada. Todo esse farto material inspirou Pannunzio a desenhar, gravar, pintar, criar vídeos. Pandemônio é, pois, um diminuto recorte de realidade do Brasil nessas fotos e na criação gráfica e pictórica por elas motivada. Leon Tolstói disse a máxima que se tornou chavão: "se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia". A tarefa foi abraçada pelo artista e o seu resultado, temperado por amargura, respira também esperança. A matéria artística que se fomentou num lugar de moradia de menos de quarenta mil habitantes o extrapola e dialoga com o país inteiro. Numa conversa que quer ir muito além de produzir emoção estética duradoura e consistente. Ela objetiva, ao impactar os sentidos, despertar consciências para a urgência de refletir sobre o passado visando a construção dum futuro saudável, de paz, harmonia, solidariedade e justiça.

Qual seria a relevância, qual seria a pertinência dum projeto que se pretende incentivado? Retribuir para a população um bem de natureza enquadrada como cultural que lhe faça bem. Essa resposta simplória que constrói uma rima pobre, não vem pra encher quadrinho de texto. Mas ela suscita sim que a questão crucial dessa pergunta é estabelecer qual é o conteúdo desse "fazer bem". Poderia ele ser o de tornar o mundo mais belo e assim, as pessoas, o público do projeto Pandemônio, feito Polyana se encantariam com ele. No caso do projeto sob análise, o caminho não é o de embelezar o real. Pandemônio irá construir um retrato artístico e crítico de um dos períodos mais agitados da história brasileira. Esse foi um recente tempo de conflagração política e ideológica, estigmatizado, como dito acima e convém sempre lembrar e relembrar honrando a memória dos milhares que morreram por um morticínio decorrente do coronavírus; marcado por três campanhas eleitorais contaminando a mídia e emporcalhando as ruas do país inteiro. Edificar um evento de fruição estética com o poder de estimular as pessoas que o visitarem a refletir sobre esse tempo tão próximo de nós, atende a um convite antiguíssimo: "Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro" feito por um grego das calendas, Heródoto. Pannunzio é fotógrafo de rua, fotojornalista e milhares de fotos suas estão disponíveis para licenciamento na Imago, na Getty Images, na iStock e Foto Arena. Como artista plástico, distinguiu-se como gravador, trabalhando preferencialmente com a xilografia de topo, uma técnica pouco conhecida e difundida no Brasil, que teve como expoentes mais famosos, Lívio Abramo e Marcelo Grassmann. Empregando essa modalidade de gravação desusada, registrou em séries temáticas, pedaços da nossa história que parecem recrudescer, emergindo com violência e paixão renovados. As obras que serão feitas pela Pandemônio desejam emular a feição instigante dessas pequenas xilogravuras que circularam o mundo em certames de artes gráficas colecionando prêmios.

No catálogo Márcio Pannunzio - Quatro Décadas, Enock Sacramento disse: "Pannunzio é um artista figurativo e temático, interessado nas grandes questões que envolvem o homem como indivíduo e membro da sociedade, tais como morte, violência, ciclos de vida, injustiça, poder, soberba, avareza, inveja, luxúria, gula, vaidade, preguiça e outros. Dos pecados capitais, apenas a ira não recebe destaque em sua obra plástica, talvez porque seja ela mais característica do agressor do que da vítima, e porque Márcio vê o mundo sob a perspectiva do oprimido. Sua estratégia para combater esses males é a ironia, a bizarrice, o grotesco e o sarcasmo. Por isso, sua obra pode incomodar, especialmente aqueles que se beneficiam desses artifícios ou comportamentos ou que não têm consciência deles."

Remexer nesse passado recente é um feito para o qual poucos se capacitam. Pannunzio, com sua experiência de mais de quatro décadas criando arte a partir de temas complexos, se qualifica a encará-lo.

Pandemônio através de várias exposições itinerantes, lançamento e distribuição de um longevo catálogo que, seguramente, nunca terá problema de hardware ou software e de um site homônimo repleto de informações, vai promover a aproximação das cidadãs e cidadãos às artes e proporcionar uma diversidade de experiências estéticas e artísticas. Estimulará uma ação de criação envolvendo uma variedade de linguagens das artes visuais e da fotografia que por sua vez, fomentará a formação de público em diversas cidades, público esse, incentivado à reflexão sobre acontecimentos que marcaram não apenas a região em que residem, mas o mundo todo. Pandemônio vai valorizar a produção artística de criadores culturais de municípios de pequeno porte na sua dimensão econômica, contribuindo para o desenvolvimento da rede produtiva das artes e de seus agentes gerando renda e empregos no setor. Embora as exposições aconteçam em três cidades paulistas do Litoral Norte, o fato de distribuir o catálogo para visitantes de outras localidades e construir e manter atualizado e ativo por três anos o site do projeto, contribuirá para a ampliação do acesso e da fruição de bens e serviços artístico-culturais além das fronteiras do estado de São Paulo. 

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