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Em fundo de tristeza e de agonia/ O teu perfil passa-me noite e dia./ Aflito, aflito, amargamente aflito,/ Num gesto estranho que parece um grito./ E ondula e ondula e palpitando vaga,/ Como profunda, como velha chaga./ E paira sobre ergástulos e abismos/ Que abrem as bocas cheias de exorcismos./ Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,/ Segue-te atrás uma visão vermelha./ Uma visão gerada do teu sangue/ Quando no Horror te debateste exangue,/ Uma visão que é tua sombra pura/ rodando na mais trágica tortura./ A sombra dos supremos sofrimentos/ Que te abalaram como negros ventos./ E a sombra as tuas voltas acompanha/ Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha./ E o teu perfil no vácuo perpassando/ Vê rubros caracteres flamejando./ Vê rubros caracteres singulares/ De todos os festins de Baltazares./ Por toda a parte escrito em fogo eterno:/ Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!/ E os emissários espectrais das mortes/ Abrindo as grandes asas flamifortes.../ E o teu perfil oscila, treme, ondula,/ Pelos abismos eternais circula.../ Circula e vai gemendo e vai gemendo/ E suspirando outro suspiro horrendo./ E a sombra rubra que te vai seguindo/ Também parece ir soluçando e rindo./ Ir soluçando, de um soluço cavo/ Que dos venenos traz o torvo travo./ Ir soluçando e rindo entre vorazes/ Satanismos diabólicos, mordazes./ E eu já nem sei se e realidade ou sonho/ Do teu perfil o divagar medonho./ Não sei se e sonho ou realidade todo/ Esse acordar de chamas e de lodo./ Tal é a poeira extrema confundida/ Da morte a raios de ouro de outra Vida./ Tais são as convulsões do último arranco/ Presas a um sonho celestial e branco./ Tais são os vagos círculos inquietos/ Dos teus giros de lágrimas secretos./ Mas, de repente, eis que te reconheço,/ Sinto da tua vida o amargo preço./Eis que te reconheço escravizada,/ Divina Mãe, na Dor acorrentada./ Que reconheço a tua boca presa/ Pela mordaça de uma sede acesa/ Presa, fechada pela atroz mordaça/ Dos fundos desesperos da Desgraça./ Eis que lembro os teus olhos visionários/ Cheios do fel de bárbaros Calvários./ E o teu perfil asas abrir parece/ Para outra Luz onde ninguém padece.../ Com doçuras feéricas e meigas/ De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas./ E o teu perfil forma um saudoso vulto/ Como de Santa sem altar, sem culto./ Forma um vulto saudoso e peregrino/ De força que voltou ao seu destino./ De ser humano que sofrendo tanto/ Purificou-se nos Azuis do Encanto./ Subiu, subiu e mergulhou sozinho,/ Desamparado, no fetal caminho./ Que lá chegou transfigurado e aéreo,/ Com os aromas das flores do Mistério.
Que lá chegou e as mortas portas mudas/ Fez abalar de imprecações agudas.../ E vai e vai o teu perfil ansioso,/ De ondulações fantásticas, brumoso./ E vai perdido e vai perdido, errante,/ Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante./ Vai suspirando, num suspiro vivo/ Que palpita nas sombras incisivo.../ Um suspiro profundo, tão profundo/ Que arrasta em si toda a paixão do mundo./ Suspiro de martírio, de ansiedade,/ De alívio, de mistério, de saudade./ Suspiro imenso, aterrador e que erra/ Por tudo e tudo eternamente aterra.../ O pandemonium de suspiros soltos/ Dos condenados corações revoltos./ Suspiro dos suspiros ansiados/ Que rasgam peitos de dilacerados./ E mudo e pasmo e compungido e absorto,/ Vendo o teu lento e doloroso giro,/ Fico a cismar qual é o rio morto/ Onde vai divagar esse suspiro.

pandemonium/ João da Cruz e Souza

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